IA e direitos de autor: inovação ou apropriação silenciosa?
Lia Raquel
Consultora especializada em Ética na Tecnologia, Estratégia, Sustentabilidade, Web3 e Impacto Social.
Muito se tem discutido sobre a capacidade do AI Act de proteger efetivamente os direitos de autor, mas o diploma, tal como se encontra, apresenta lacunas significativas, tanto na sua aplicação como na sua interpretação. Entre estas, destaca-se a possibilidade de os sistemas de IA serem treinados com recurso a obras musicais, literárias, cinematográficas ou visuais sem que exista, necessariamente, uma justa remuneração para os respetivos autores e criadores.
Se a legislação europeia estabelece que a IA deve ser “segura, transparente, rastreável, não discriminatória e amiga do ambiente”, coloca-se a questão: como é que, na prática, continua a ser permitido o uso de conteúdos protegidos sem que exista um quadro sancionatório suficientemente robusto para dissuadir práticas suscetíveis de violar direitos de autor?
No quadro jurídico da União Europeia, a diretiva relativa aos direitos de autor e direitos conexos no mercado único digital (Diretiva (UE) 2019/790) prevê que o uso de conteúdos protegidos para extração de texto e dados (uma prática comum no treino de modelos de IA) seja permitido, exceto quando o titular de direitos tiver expressamente reservado esses direitos. Dito desta forma, esta configuração coloca a responsabilidade primária sobre o autor, criador ou titular, que deve manifestar essa reserva, e não sobre a empresa, que poderia, alternativamente, ter de obter consentimento prévio.
Como consequência, muitos artistas, autores e outros detentores de direitos não só não recebem uma justa remuneração, como dispõem de meios técnicos limitados para monitorizar a utilização das suas obras. Em certa medida, o atual Código de Conduta para a Inteligência Artificial de Finalidade Geral procura, de forma voluntária, mitigar parte deste problema e respetivos riscos. No capítulo dedicado aos direitos de autor, estabelece compromissos como:
- Usar apenas conteúdos obtidos de forma legal;
- Cumprir reservas de direitos expressas de forma legível por máquina (ex.:
robots.txt
, metadados); - Implementar salvaguardas técnicas para prevenir saídas que possam infringir direitos;
- Proibir usos que violem direitos de autor nos termos de utilização;
- Disponibilizar canais de contacto e mecanismos de queixa acessíveis.
Contudo, é relevante destacar que este código não possui um caráter vinculativo e não substitui a obrigação de cumprir a legislação aplicável. Isto significa que reconhece expressamente que a interpretação e aplicação do direito cabem exclusivamente aos tribunais, o que o afasta de qualquer função normativa ou interpretativa direta. Por um lado, esta abordagem assegura salvaguardas institucionais. Por outro lado, também significa que a sua adesão não garante, por si só, conformidade legal plena. É também pertinente referir que para operadores menos experientes em compliance, este aspeto pode gerar uma perceção incompleta sobre a extensão das suas obrigações. E acresce que o documento não prevê retroatividade, não define mecanismos independentes e regulares de monitorização, nem contempla as sanções previstas em caso de incumprimento.
A isto soma-se a opacidade sistémica que caracteriza a origem e a composição dos dados de treino, tornando difícil, tanto para autores e criadores como para reguladores, verificar a conformidade, avaliar o cumprimento das reservas de direitos e identificar eventuais utilizações indevidas de conteúdos protegidos. Do mesmo modo, isso significa que os conteúdos usados para treino antes da entrada em vigor do Código não são afetados.
Assim sendo, do ponto de vista ético, estas limitações configuram um espaço de incerteza regulatória e ética: mesmo em conformidade formal com a lei, continua a ser possível utilizar obras criativas e/ou intelectuais sem garantir uma remuneração justa, proporcional e transparente aos seus autores. Tal prática reforça desigualdades na distribuição de valor, concentra os benefícios em poucos intervenientes tecnológicos e pode, a longo prazo, reduzir a diversidade cultural e a liberdade criativa. Pode, por isso, sublinhar-se que este cenário evidencia a necessidade de reforçar simultaneamente o enquadramento legal e os mecanismos de governança voluntária, incorporando desde a fase de conceção dos modelos uma ética de design que promova a equidade, a sustentabilidade e a preservação do património cultural.
Por fim, e numa perspetiva de ética aplicada, importa referir que este desafio não se limita à conformidade legal, o que exige uma corresponsabilização ao longo de toda a cadeia de valor da IA, do treino à utilização final, assegurando que os benefícios tecnológicos não sejam obtidos à custa da exploração silenciosa de trabalho criativo. A questão, portanto, permanece em aberto: estamos perante um caminho sólido para a inovação responsável ou diante de um modelo regulatório que, por omissão, mantém vulnerabilidades estruturais? Ver mais na Euronews