99% dos novos produtos digitais não devem ser desenvolvidos

Vitor Soares

Vítor Soares é Head of Product & Growth na TIPS4Y, uma tecnológica especializada em soluções de dados…

A afirmação é minha e não tem qualquer fonte que a sustente, apenas a minha percepção e um número que capte a atenção do leitor. Mas calma, verá que, ainda que não cientifico, tem alguns argumentos que sustentam o palpite e que merecem que pensemos sobre eles.

Nos últimos anos, o mundo das startups digitais passou por uma transformação radical. Se antes “bastava” ter uma boa ideia (e bem validada – ver mais sobre metodologia Jobs To Be Done aqui) e uma equipa dedicada para lançar um produto de sucesso, hoje o cenário é bem diferente. A utilização em larga escala de inteligência artificial (IA), nomeadamente dos modelos de linguagem de grande escala (LLMs), tornou muito mais fácil qualquer pessoa criar produtos digitais – claro que quando aumenta a complexidade, conhecimentos avançados de programação são necessários. Mas isso também significa que a concorrência aumentou exponencialmente.

A nova realidade das startups digitais

Há cerca de cinco anos, lançar, por exemplo, um SaaS (software as a service) e ser excelente na sua produtização e estratégia de go-to-market seria suficiente para conquistar uma fatia significativa do mercado. No entanto, no novo mundo de AI pós-ChatGPT e a proliferação dos chamados indie hackers – alguém que constrói e lança um negócio/produto sozinho, sem o apoio de uma grande organização ou equipa -, criar produtos digitais tornou-se mais acessível do que nunca. Isso levou a um mercado saturado, onde destacar-se exige mais do que “apenas” uma boa ideia (1%) e excelente execução (99%).

Dois empreendedores entusiasmados com uma ideia de produto digital contrastam com dezenas de apps iguais num mar de lançamentos do Product Hunt em 2025.
Meme gerado com Google Gemini Pro, com a seguinte prompt: desenha agora este Meme visual: Expectation vs. Reality Topo – Expectation Imagem: Pessoa entusiasmada junto a um quadro com post-its e a frase: “Tenho uma ideia incrível, isto vai mudar o mundo!” Inferior – Reality Imagem: Montanha de produtos SaaS quase idênticos agrupados, estilo Product Hunt, com a frase: “O mercado pós‑ChatGPT em 2025: 7 produtos iguais lançados esta semana só no Product Hunt.”

A importância de uma vantagem competitiva clara

Neste novo cenário, ter uma vantagem competitiva clara tornou-se (ainda mais) essencial. Isso pode assumir várias formas:

  • Dados proprietários: Ter acesso a dados exclusivos que não estão disponíveis para concorrentes pode ser uma enorme vantagem. Esses dados podem ser usados para treinar modelos de IA personalizados, oferecendo soluções mais precisas e adaptadas às necessidades dos clientes.
    Por exemplo, a Tesla recolhe dados em tempo real de milhões de quilómetros percorridos pelos seus carros. Estes dados, exclusivos, são usados para treinar o sistema de condução autónoma e preparar a transição para uma rede de robotáxis – algo que outras empresas não conseguem replicar facilmente (como aparentemente a Apple terá tentado sem sucesso).

     

  • Acesso privilegiado a mercados ou nichos específicos: Conhecer profundamente um setor ou ter conexões que permitam uma entrada facilitada pode ser decisivo para o sucesso.
    Exemplo: a aplicação Figure 1 foi criada por um médico de cuidados intensivos no Canadá e rapidamente se tornou uma rede global onde profissionais de saúde partilham casos clínicos reais.

     

  • Há claro uma terceira opção: estar em Sillicon Valley, ter uma super equipa e levantar centenas de milhões de USD para começar (mas creio que o leitor não terá acesso a esta última opção).

Como é que a IA está a nivelar o campo de jogo

Mas nem tudo é mau para quem está a competir em território de produtos digitais. A inteligência artificial está a dar novas armas às startups com menos recursos, permitindo-lhes criar soluções competitivas sem precisar de milhões em infraestrutura. Um exemplo disso são os modelos de linguagem de código aberto, como o LLaMA, da Meta, ou o Mistral (LLM europeu). Estes modelos já vêm treinados por gigantescos volumes de dados e podem ser ajustados com dados específicos de cada startup/negócio – um processo conhecido como fine-tuning.  Isto significa que, em vez de construir um modelo de IA do zero (como fazem gigantes como a Google ou a OpenAI), uma startup pode pegar num destes modelos prontos e adaptá-lo ao seu caso de uso. 

Além disso, ferramentas de IA estão a ser usadas para automatizar tarefas, acelerar o atendimento ao cliente e personalizar experiências, tornando as operações mais eficientes e escaláveis. O que antes necessitava de 2 recursos humanos hoje pode necessitar de apenas 1; e talvez num par de anos a relação passe a ser 5:1 ou 10:1 – o que vai causar muita pressão nas grandes empresas, mas facilitar ainda mais a vida a novas startups.

Estratégias para a startup se destacar no contexto atual

Para ter sucesso neste ambiente competitivo, as startups podem considerar as seguintes estratégias:

  • Foco em nichos ultra específicos: Em vez de tentar chegar a todos, concentrar-se num segmento de mercado ultra específico pode permitir oferecer micro soluções melhores e mais baratas e, assim, construir uma base de clientes leais.
    É o caso de várias ferramentas de formularios online que continuam a surgir com funcionalidades adaptadas a nichos concretos. Apesar do Typeform ter grande sucesso junto de equipas de Marketing e UX (user experience), o Tally surgiu como alternativa com formulários super rápidos e uma interface minimalista.

     

  • Parcerias estratégicas: Colaborar com outras empresas, associações ou instituições pode abrir portas para todo um segmento de clientes.
    Apesar de ser um exemplo de má memória em termos legais e éticos (se não conhece, recomendo ver a série The Dropout), em 2013, a Theranos anunciou uma parceria de longo prazo com a Walgreens, uma das maiores cadeias de farmácias dos EUA. O objetivo era abrir “Wellness Centers” da Theranos dentro das lojas Walgreens em todo o país, onde os clientes poderiam fazer exames de sangue rápidos e acessíveis com apenas algumas gotas de sangue.

     

  • Investimento em dados e IA: Coletar, tratar e analisar dados relevantes pode fornecer insights valiosos para melhorar produtos e serviços, ou até mesmo revolucionar toda uma indústria. Basta aplicar de forma inteligente modelos já existentes, como os de código aberto, e afiná-los com dados próprios. É esta combinação – bons dados + aplicação prática de IA – que permite às startups oferecer experiências personalizadas, automatizar tarefas e resolver problemas que antes pareciam impossíveis.
    O busílis da questão reside em conseguir ter acesso a esses mesmos dados, claro.

Conclusão

No cenário atual, onde a criação de produtos digitais se tornou mais acessível devido à IA (e na verdade todo um conjunto de ferramentas pré-ChatGPT), a competição é acirrada. Para se destacarem, as startups precisam de mais do que uma boa ideia e excelente execução; necessitam de vantagens competitivas claras, como dados proprietários ou acesso privilegiado a nichos.

Embora a IA nivele o campo de jogo ao permitir o uso de modelos pré-treinados e automação, o sucesso depende do acesso e aplicação estratégica de dados e da escolha de nichos ultra específicos. Parcerias também podem abrir portas, mas o foco deve estar em inovação e soluções segmentadas.

Para quem investe em tecnologia, o que interessa não é a ideia: é a vantagem que ninguém mais consegue copiar, the secret sauce. Os sinais a observar são simples: dados que só aquela startup tem ou um canal exclusivo que ninguém mais penetra (unfair go-to-market advantage). E se o empreendedor quer ser bem sucedido, talvez seja bom pensar como o investidor neste ponto.

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