99% dos novos produtos digitais não devem ser desenvolvidos
Vitor Soares
Vítor Soares é Head of Product & Growth na TIPS4Y, uma tecnológica especializada em soluções de dados…
A afirmação é minha e não tem qualquer fonte que a sustente, apenas a minha percepção e um número que capte a atenção do leitor. Mas calma, verá que, ainda que não cientifico, tem alguns argumentos que sustentam o palpite e que merecem que pensemos sobre eles.
Nos últimos anos, o mundo das startups digitais passou por uma transformação radical. Se antes “bastava” ter uma boa ideia (e bem validada – ver mais sobre metodologia Jobs To Be Done aqui) e uma equipa dedicada para lançar um produto de sucesso, hoje o cenário é bem diferente. A utilização em larga escala de inteligência artificial (IA), nomeadamente dos modelos de linguagem de grande escala (LLMs), tornou muito mais fácil qualquer pessoa criar produtos digitais – claro que quando aumenta a complexidade, conhecimentos avançados de programação são necessários. Mas isso também significa que a concorrência aumentou exponencialmente.
A nova realidade das startups digitais
Há cerca de cinco anos, lançar, por exemplo, um SaaS (software as a service) e ser excelente na sua produtização e estratégia de go-to-market seria suficiente para conquistar uma fatia significativa do mercado. No entanto, no novo mundo de AI pós-ChatGPT e a proliferação dos chamados indie hackers – alguém que constrói e lança um negócio/produto sozinho, sem o apoio de uma grande organização ou equipa -, criar produtos digitais tornou-se mais acessível do que nunca. Isso levou a um mercado saturado, onde destacar-se exige mais do que “apenas” uma boa ideia (1%) e excelente execução (99%).
A importância de uma vantagem competitiva clara
Neste novo cenário, ter uma vantagem competitiva clara tornou-se (ainda mais) essencial. Isso pode assumir várias formas:
- Dados proprietários: Ter acesso a dados exclusivos que não estão disponíveis para concorrentes pode ser uma enorme vantagem. Esses dados podem ser usados para treinar modelos de IA personalizados, oferecendo soluções mais precisas e adaptadas às necessidades dos clientes.
Por exemplo, a Tesla recolhe dados em tempo real de milhões de quilómetros percorridos pelos seus carros. Estes dados, exclusivos, são usados para treinar o sistema de condução autónoma e preparar a transição para uma rede de robotáxis – algo que outras empresas não conseguem replicar facilmente (como aparentemente a Apple terá tentado sem sucesso). - Acesso privilegiado a mercados ou nichos específicos: Conhecer profundamente um setor ou ter conexões que permitam uma entrada facilitada pode ser decisivo para o sucesso.
Exemplo: a aplicação Figure 1 foi criada por um médico de cuidados intensivos no Canadá e rapidamente se tornou uma rede global onde profissionais de saúde partilham casos clínicos reais. - Há claro uma terceira opção: estar em Sillicon Valley, ter uma super equipa e levantar centenas de milhões de USD para começar (mas creio que o leitor não terá acesso a esta última opção).
Como é que a IA está a nivelar o campo de jogo
Mas nem tudo é mau para quem está a competir em território de produtos digitais. A inteligência artificial está a dar novas armas às startups com menos recursos, permitindo-lhes criar soluções competitivas sem precisar de milhões em infraestrutura. Um exemplo disso são os modelos de linguagem de código aberto, como o LLaMA, da Meta, ou o Mistral (LLM europeu). Estes modelos já vêm treinados por gigantescos volumes de dados e podem ser ajustados com dados específicos de cada startup/negócio – um processo conhecido como fine-tuning. Isto significa que, em vez de construir um modelo de IA do zero (como fazem gigantes como a Google ou a OpenAI), uma startup pode pegar num destes modelos prontos e adaptá-lo ao seu caso de uso.
Além disso, ferramentas de IA estão a ser usadas para automatizar tarefas, acelerar o atendimento ao cliente e personalizar experiências, tornando as operações mais eficientes e escaláveis. O que antes necessitava de 2 recursos humanos hoje pode necessitar de apenas 1; e talvez num par de anos a relação passe a ser 5:1 ou 10:1 – o que vai causar muita pressão nas grandes empresas, mas facilitar ainda mais a vida a novas startups.
Estratégias para a startup se destacar no contexto atual
Para ter sucesso neste ambiente competitivo, as startups podem considerar as seguintes estratégias:
- Foco em nichos ultra específicos: Em vez de tentar chegar a todos, concentrar-se num segmento de mercado ultra específico pode permitir oferecer micro soluções melhores e mais baratas e, assim, construir uma base de clientes leais.
É o caso de várias ferramentas de formularios online que continuam a surgir com funcionalidades adaptadas a nichos concretos. Apesar do Typeform ter grande sucesso junto de equipas de Marketing e UX (user experience), o Tally surgiu como alternativa com formulários super rápidos e uma interface minimalista. - Parcerias estratégicas: Colaborar com outras empresas, associações ou instituições pode abrir portas para todo um segmento de clientes.
Apesar de ser um exemplo de má memória em termos legais e éticos (se não conhece, recomendo ver a série The Dropout), em 2013, a Theranos anunciou uma parceria de longo prazo com a Walgreens, uma das maiores cadeias de farmácias dos EUA. O objetivo era abrir “Wellness Centers” da Theranos dentro das lojas Walgreens em todo o país, onde os clientes poderiam fazer exames de sangue rápidos e acessíveis com apenas algumas gotas de sangue. - Investimento em dados e IA: Coletar, tratar e analisar dados relevantes pode fornecer insights valiosos para melhorar produtos e serviços, ou até mesmo revolucionar toda uma indústria. Basta aplicar de forma inteligente modelos já existentes, como os de código aberto, e afiná-los com dados próprios. É esta combinação – bons dados + aplicação prática de IA – que permite às startups oferecer experiências personalizadas, automatizar tarefas e resolver problemas que antes pareciam impossíveis.
O busílis da questão reside em conseguir ter acesso a esses mesmos dados, claro.
Conclusão
No cenário atual, onde a criação de produtos digitais se tornou mais acessível devido à IA (e na verdade todo um conjunto de ferramentas pré-ChatGPT), a competição é acirrada. Para se destacarem, as startups precisam de mais do que uma boa ideia e excelente execução; necessitam de vantagens competitivas claras, como dados proprietários ou acesso privilegiado a nichos.
Embora a IA nivele o campo de jogo ao permitir o uso de modelos pré-treinados e automação, o sucesso depende do acesso e aplicação estratégica de dados e da escolha de nichos ultra específicos. Parcerias também podem abrir portas, mas o foco deve estar em inovação e soluções segmentadas.
Para quem investe em tecnologia, o que interessa não é a ideia: é a vantagem que ninguém mais consegue copiar, the secret sauce. Os sinais a observar são simples: dados que só aquela startup tem ou um canal exclusivo que ninguém mais penetra (unfair go-to-market advantage). E se o empreendedor quer ser bem sucedido, talvez seja bom pensar como o investidor neste ponto.